quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Radiografia dos salários do funcionalismo público

Nosso membro fundador, Carlos A. B. Góes, hoje pesquisador de economia latino-americana na Johns Hopkins University, publicou este excelente artigo no Valor Econômico
Como aperitivo e em tempos de greve: 

"Contudo, é difícil argumentar em favor de salários ainda maiores para um funcionalismo público que ganha, na média, quase 75% mais do que o resto da sociedade que o sustenta.

Íntegra do artigo:

Radiografia dos salários do funcionalismo público  

Por Carlos A. B. Góes
                                
No último mês, notícias sobre mobilizações de greves nacionais ocuparam lugar de destaque na imprensa. Os professores e técnicos das universidades federais interromperam seus trabalhos. O mesmo ocorreu com os servidores do ensino técnico e tecnológico. Até mesmo os funcionários do Itamaraty - assistentes e oficiais de Chancelaria e alguns diplomatas - que tradicionalmente não entram em greve cruzaram os braços.
O aumento no número de greves de servidores públicos é um fenômeno generalizado no país. Segundo dados do Dieese, entre 2007 e 2011 as greves no setor público aumentaram 138%. Seria de se esperar que essa diferença fosse explicada por uma estagnação nos salários do funcionalismo público num passado recente. Entretanto, uma análise desses números nos mostra que o salário real dos funcionários públicos - isto é, já corrigido pela inflação - aumentou 28,2% desde 2003, com uma aceleração a partir de 2005.
Contra-intuitivamente, períodos de aumentos significativos no salário real foram seguidos de um crescimento no número de greves. Ao invés de uma curva de satisfação e acomodação com os ganhos reais, a forte correlação entre o número de greves que se seguem a períodos de aumento no salário real parece apontar para uma curva de aprendizado: como se os sindicatos percebessem que sua estratégia está funcionando e intensificassem suas ações em busca de ganhos ainda maiores.
Esse fenômeno vem criando uma distorção entre os níveis de ganho salarial entre os setores público e privado da economia. No setor privado, os aumentos no salário real estão limitados pelos ganhos de produtividade (em economês, limitados pelo "produto marginal do trabalho") e pelo poder de barganha de firmas e sindicatos na negociação salarial. No setor público a medida de produtividade não é objetiva e a relação entre o empregador - o governo - e os sindicatos tem idiossincrasias políticas mais complexas. Em contraste com os 28,2% de ganhos reais no setor público citados acima, desde 2003, os salários reais no setor privado cresceram 6,9%. Isso significa dizer que o crescimento relativo dos rendimentos reais do setor público foi quatro vezes maior que o do setor privado.
Tal situação se torna um problema quando se considera que os salários do setor público, ao começo da década, já eram maiores que os do setor privado. Como a maior parte da população é remunerada no setor privado, isso significa que o funcionalismo público tem tornado-se cada vez mais parte da elite econômica. Por exemplo, o Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes) reivindica em suas negociações de greve um salário mensal de R$ 22.633,92 para professores titulares das universidades federais. Se os salários reinvindicados se tornarem realidade, isso significará que esses professores terão uma renda maior do que a de 99,5% da população brasileira. Com toda a deferência necessária à nobre arte do magistério, a transferência de renda para aqueles que constituem 0,5% mais abastado do país parece difícil de ser justificada como objeto de qualquer política pública.
O hiato entre a renda média do funcionalismo público e a renda média dos demais trabalhadores brasileiros tem aumentado fortemente na última década. Tomando como base dados da Pesquisa Mensal de Empregos do IBGE, é possível verificar que, durante o ano de 2003, um funcionário público ganhou mensalmente, em média, R$ 602 a mais que um trabalhador do setor privado. Já em 2011, essa diferença aumentou para R$ 1164. Além disso, estudo recente da PUC-Rio aponta que, quando considerados salários e rendimentos com aposentadorias, a vantagem para o funcionalismo público torna-se prevalente para todos os níveis de escolaridade - de trabalhadores sem educação formal àqueles com pós-graduação. Como os funcionários públicos ganham mais que a média, o aumento dessa diferença constitui objetivamente uma política de concentração de renda.
A atual tendência funciona como forte atrativo para que mais pessoas saiam do setor privado e busquem os maiores salários e benefícios do setor público. Segundo a Associação Nacional de Proteção e Apoio aos Concursos (Anpac), associação formada por cursos preparatórios para concursos, cerca de 11 milhões de pessoas se candidataram a vagas no funcionalismo público em 2011. E, julgando pela atual conjuntura, não existe perspectiva de mudança nesse cenário. À medida que os trabalhadores mais capacitados deixam o setor privado, menores tenderão a ser, no longo prazo, as perspectivas de crescimento da produtividade da economia.
Não há dúvidas de que o país precisa de funcionários públicos capacitados e justamente remunerados que ajudem a minimizar as ineficiências da gestão governamental e combater a corrupção. Contudo, é difícil argumentar em favor de salários ainda maiores para um funcionalismo público que ganha, na média, quase 75% mais do que o resto da sociedade que o sustenta. Uma radiografia dos salários no setor público revela, portanto, uma política que concentra renda, drena talentos dos setores produtivos e, por questões políticas, garante aumentos reais maiores do que os ganhos médios de produtividade do país - minando as bases de seu crescimento no longo prazo.

Carlos A. B. Góes é pesquisador de economia latino-americana vinculado à Universidade Johns Hopkins.

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